(Publicado originalmente no Brasil de Fato) Lamentavelmente predomina no meio do povo religioso a leitura fundamentalista da Bíblia ancorada no falso princípio segundo o qual a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas posta em prática. Entre os muitos métodos de se interpretar a Bíblia, o pior de todos e único método repudiado pela Comissão Bíblica do Vaticano (Igreja Católica) é o método fundamentalista.
Ingenuamente, muitas pessoas pensam que basta ler e automaticamente o que lhe vem à cabeça à primeira vista seja a interpretação correta do texto bíblico lido. Ledo engano. Como nem tudo que reluz é ouro, assim também muita coisa que lhe vem à mente a partir de suas pré-compreensões ao ler um texto bíblico pode não ser o que o texto quer dizer.
Se ignorarmos que os textos bíblicos são literaturas escritas em outros contextos muito antigos, com certos pretextos e intenções, se não buscarmos compreender as formas e os gêneros literários dos textos, ficará muito difícil compreender o significado mais profundo de cada passagem bíblica. Será muito grande o risco de se projetar nos textos bíblicos pré-compreensões recheadas de ideologia dominante, seja ela cultural ou religiosa.
Formas e gêneros literários na Bíblia
As formas e os gêneros literários nascem da maneira como as pessoas se expressam, oralmente ou por escrito; daquilo que elas desejam comunicar; do ambiente humano que as circundavam; da própria maneira como as pessoas se comunicam e interagem com os seus ouvintes. Raramente nascem da intenção do autor de querer adaptar sua linguagem à realidade do povo.
A Bíblia é literatura e como tal deve ser lida e bem interpretada. “Não vivemos do mesmo modo todos os momentos, nem todas as realidades. Nossa atitude vital muda segundo a nossa situação, o momento, a idade, o interesse e a intenção. E a linguagem muda de registro e se articula de modos distintos quando ocorre uma dessas mudanças”, afirma José Pedro Tosaus Abadía, no livro A Bíblia como Literatura.
Como a Palavra de Deus não chega diretamente aos humanos, mas é mediada pela palavra humana, Deus escolheu os seus profetas para a transmissão da sua mensagem. Daí a importância de conhecer as diversas formas usadas para a transmissão dessa Palavra para melhor captar e acolher a sua mensagem.
Ela começou com a tradição oral depois foram nascendo gradativamente os primeiros escritos, por volta de 1200 antes da era cristã, com o cântico de Débora, mais tarde o cântico de Miriam. Contudo permanece a pergunta: o que são formas e gêneros literários?
O pensamento humano torna-se concreto quando se transforma em palavra, em sua forma oral ou escrita, por meio de formas e gêneros literários. Esta forma depende do ambiente, do lugar geográfico e social que a pessoa ocupa, do público ao qual pertence e ao qual se dirige sua mensagem, daquilo que a pessoa deseja comunicar. Por isso, é preciso interpretar sensatamente os textos.
Um nordestino que vive na sua comunidade do nascimento até se tornar idoso, e que viajou pouquíssimas vezes, tem um jeito de se expressar diferente de um ribeirinho do Beiradão do rio Madeira no sul do estado do Amazonas onde se vive no meio da floresta, sem cavalo, sem moto, sem jegue, andando nas águas dos igarapés, lagos e rios, ouvindo os pássaros.
Cada região do estado ou do país tem sua cultura e com ela seu jeito de falar, escrever e se comunicar. Logo, não podemos imaginar que a Bíblia escrita ao longo de 1300 anos, entre o ano 1200 antes da era cristã e o ano 110 da era cristã, recolhendo uma imensa pluralidade de experiências de vida de muitos povos e circunstâncias diferentes, signifique para nós o que aparenta ser à primeira vista. E mais! Ninguém é tábula rasa ao ler ou ouvir os textos bíblicos. Todos nós lemos ou ouvimos os textos bíblicos com nossas pré-compreensões que, se não forem questionadas, podem nos induzir a falsas interpretações dos textos bíblicos. Por isso, a necessidade de compreendermos as formas e os gêneros literários bíblicos.
O que é a forma literária?
De origem latina, a palavra forma pode significar fôrma, molde, imagem, figura e não tem um sentido uniforme e unívoco; às vezes, é confundida com gênero ou espécie, o que não corresponde.
Não há uma dicotomia entre forma e conteúdo, antes “há uma íntima fusão entre os dois estratos ou modos de ser do texto… ambos se concentram num único objeto, a palavra escrita”, afirma Massaud Moisés em seu Dicionário de Termos Literários.
Forma e conteúdo são como carne e unha, estão sempre juntas, salvo exceções. A forma é tida muitas vezes como invólucro, mas não corresponde exatamente a isto, porque entre forma e conteúdo há uma integridade dinâmica e concreta que tem um conteúdo em si próprio, fora de qualquer correlação. Conteúdo e forma são inseparáveis, se revelam e se expressam no texto literário.
A forma literária pressupõe o que se diz, ou seja, o conteúdo e o modo de como se diz. Ambos estão inter-relacionados e são correlatos no ato de expressão. Como diz a filosofia moderna: só se pode conhecer o que está no tempo e no espaço, também na comunicação escrita só se escreve um conteúdo usando uma forma.
As formas literárias são as diferentes maneiras, pelas quais, os meios de expressão literária se organizam, em função de um efeito que o autor pretende alcançar. Elas carregam características comuns para poder classificá-los, por exemplo, entre as diferentes figuras de linguagem como a metáfora, a comparação e outras.
No caso da metáfora há a transferência para uma palavra, de características de outra, por exemplo no Salmo 103,14: “O Senhor se lembra do pó que somos nós”. Há uma identificação do pó com o ser humano. É uma comparação condensada sem o conectivo como. No Sl 103 a comparação do ser humano com o pó é para combater o orgulho, a arrogância do ser humano? Ou teria outro pretexto? Levantar esse tipo de pergunta é imprescindível para se chegar a uma interpretação justa.
Outra figura de linguagem é a comparação com o conectivo ‘como’: “O homem!… seus dias são como a relva: ele floresce como a flor do campo; roça-lhe um vento e já desaparece, ninguém mais reconhece seu lugar” (Sl 103,15). Compara o ser humano com a relva e a flor do campo, que hoje existem e amanhã não mais, são efêmeros, passam como a relva e a flor do campo, mas tem a vocação de ser relva cotidianamente e vicejar como a flor do campo.
Muitos estudiosos da Bíblia estabelecem diferença entre forma e gênero. A forma designaria para eles a unidade literária de extensão menor, já fixada oralmente ou por escrito. E por gênero designaria a unidade maior, mais extensa e global. Este gênero é identificado, reconhecido e classificado com base em três critérios fundamentais: os motivos formais; os motivos de conteúdo; e a situação vivencial que deu origem ao texto. Para entender melhor o que é gênero é preciso detalhar quais são os motivos de forma, conteúdo e situação vivencial.
O que é gênero literário?
A palavra Gênero como Forma vem do latim e significa linhagem, família. É uma questão muito antiga já discutida entre os filósofos gregos. Ele não tem uma forma unívoca e serve também para designar categorias literárias nos seus diferentes níveis como a prosa, poesia, poesia lírica, poesia épica, a novela, o soneto, ode, epigrama. Os gêneros literários são imanentes e ao mesmo tempo transcendem a obra, porque é possível encontrar as semelhanças entre as obras, o que torna possível a abstração, que por sua vez, vai além de cada obra.
Há características que são constantes em cada gênero e outras são variáveis. As constantes são as que os identificam. Podem ser classificados por analogia ou semelhança.
Pode ser um pouco amargo buscar e tentar compreender as formas e os gêneros dos textos bíblicos, mas é caminho salutar e necessário para se compreender de forma justa e sensata os textos bíblicos, ainda mais atualmente em tempos de fascismo e de extrema-direita usando e abusando de textos bíblicos e do nome de Deus para impor projetos de morte. Projetos idolátricos que são repudiados com veemência pelos profetas e profetisas bíblicas.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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