Amor, comunhão, catolicidade

Desta vez tentarei ser breve e menos formal. Falo sobre os recentes acontecimentos envolvendo a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), para além da questão litúrgica, já tratada em A sacramentalização do rito.

Meu questionamento é simples: eles tanto falam em promover a “tradição católica”, mas o que fazem? Em 1988, o papa João Paulo II escreveu o importante documento Ecclesia Dei, especificamente acerca de certas atitudes do fundador da FSSPX, Monsenhor Marcel Lefebvre, mais especificamente a ordenação de quatro bispos em “desobediência ao Romano Pontífice em matéria gravíssima e de importância capital para a unidade da Igreja […] Por isso, tal desobediência – que traz consigo uma rejeição prática do Primado romano – constitui um ato cismático“, acrescentando que todos eles (Lefebvre e os quatro bispos por ele ordenados) incorreram na pena canônica de excomunhão (n.º 3).

Prosseguiu o Santo Padre:

4. A raiz deste acto cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não tem em suficiente consideração o carácter vivo da Tradição, “que – como é claramente ensinado pelo Concílio Vaticano II – sendo transmitida pelos Apóstolos … progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração, quer mercê da íntima inteligencia que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade”.

Mas é sobretudo contraditória uma noção de Tradição que se opõe ao Magistério universal da Igreja, do qual é detentor o Bispo de Roma e o Colégio dos Bispos. Não se pode permanecer fiel à Tradição rompendo o vínculo eclesial com aquele a quem o próprio Cristo, na pessoa do Apostolo Pedro, confiou o ministério da unidade na sua Igreja.

E contra isso se insurgem novamente os Lefebvrianos, apesar dos reiterados convites à unidade. Mais recentemente, eles impuseram “condições” para retornar à plena comunhão com a Igreja Católica, dentre elas liberdade para “acusar e até corrigir os promotores dos erros do modernismo, liberalismo, [Concílio] Vaticano II e conseqüências”. Entre as “conseqüências” convém salientar uma suposta diminuição da autoridade do papa em vista da promoção da colegialidade dos bispos. O que é isso, senão ir contra a tradição viva da igreja? O que é falar de tradição rompendo com a tradição viva da Igreja? O que é falar de “diminuição da autoridade do papa” impondo condições ao papa?

Compreendendo o Ecclesia Dei, alguns católicos mais apegados às antigas formas do rito romano fundaram a Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP), que preserva as formas anteriores ao Concílio Vaticano II, mas conserva também a unidade com a Igreja Católica, a qual se insere e tem de agir num mundo que não congelou em 1962, ano da última edição do missal antigo.

As divergências entre a FSSPX e o Vaticano não se resolverão com a imposição de um determinado modo de ser Igreja, de participar da diversidade de dons do mesmo Espírito (I Co 12,4). Sábias são as palavras do beato João Paulo II:

5. […] Todavia, é preciso que todos os Pastores e os demais fiéis tomem nova consciência, não só da legitimidade mas também da riqueza que representa para a Igreja a diversidade de carismas e de tradições de espiritualidade e de apostolado, o que constitui a beleza da unidade na variedade: daquela “sintonia” que, sob o impulso do Espírito Santo, a Igreja terrestre eleva ao céu.

São palavras que devemos ter sempre em mente, quer tratemos da FSSPX, quer de qualquer grupo dentro da Igreja, sejam tradicionalistas, carismáticos, adeptos da teologia da libertação, ou o que mais houver. Deus é amor (I Jo 4,16), não é?


Comentários

2 respostas para “Amor, comunhão, catolicidade”

  1. Incorreram na pena canônica da excomunhão?

    Fiquei curiosa para saber o que eles fizeram…

    1. O que eles fizeram foi a ordenação episcopal em desobediência ao papa (na época, o beato João Paulo II). Ou seja, voluntariamente deixaram de estar em comunhão com a Igreja romana, incorrendo em excomunhão. Nas palavras do papa: “Por isso, tal desobediência – que traz consigo uma rejeição prática do Primado romano – constitui um ato cismático” – “cisma” é justamente o rompimento com a Igreja Católica, o deixar a comunhão (excomunhão).

      A alegação deles sempre foi a de temor de “grave perigo”, pois o monsenhor Marcel Lefebvre já estava velho e logo morreria (o que aconteceu três anos depois, em 1991). Se realmente fosse justificável esse temor, conforme o Código de Direito Canônico a excomunhão não ocorreria, mas o ato foi praticado depois de longo diálogo e até um “compromisso” assinado entre o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger (hoje papa Bento XVI), e o próprio Lefebvre. Além disso, a “justificativa” desse temor, alegada pela FSSPX, seria justamente a de que a Igreja teria se afastado da tradição após o Concílio Vaticano II – e isso incluiria os papas e o conjunto dos bispos.

      Nas tentativas posteriores de fazer os lefebvrianos voltarem à comunhão católica, chegou-se até mesmo a levantar a excomunhão sobre os quatro “bispos” vivos. No entanto, as “condições” que essa fraternidade impõe à Santa Sé são uma completa afronta à doutrina “de sempre”, para usar o termo do qual eles tanto gostam. Seria revogar a autoridade dos concílios e do próprio papa, pois significaria emendar toda a obra de Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e do próprio Bento XVI.

      Enfim, eles tentam voltar à comunhão católica (ou seja encerrar definitivamente a excomunhão dos “bispos” e de toda a FSSPX) impondo ao papa a revisão de todo o ministério da Igreja nos últimos 50 anos.

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